1818 pra 1984 com pitadas de 1964

Passei meu TCC todo criticando a subnotificação de reação adversa de um dado medicamento. Quando entrei na residência, minha saga continuou e em mais de um projeto teórico-prático, fiz a mesma crítica. 
Quem estudou epidemiologia um dia na vida sabe: sem notificação de dados, sem registro, não é possível tomar medidas de precaução pra evitar tragédias em saúde pública. 
Esse é o objetivo do governo vigente. Se a curva de contágio magicamente começa a declinar, olha só que bom!, podemos voltar ao normal como vários outros países. Financiar hospital de campanha? Pra que? O número de mortes caiu! Quarentena, isolamento social, auxílio emergencial? Eles que lutem, que vão trabalhar! 
A "gripezinha" que até domingo passado matava 1300 pessoas por contagem diária, desde ontem mata "só" 500. 
Sabe quando a gente fazia conta na prova de matemática e achava o resultado estranho e pensava "devo estar fazendo essa conta errada, vou tentar de outro jeito."? É isso. 
A diferença é que esse "outro jeito" tá errado e é proposital.
Há umas semanas eu debati com um colega de profissão que reclamou da forma como os dados eram divulgados no balanço diário do MS porque os números  daquele dia não tinham sido só de mortes da véspera, mas todas as confirmações das vésperas, contados naquele dia. E eu disse que ele nunca ia ver noticiado o que ele achava "justo", que era as mortes que de fato ocorreram nas últimas 24h (ao invés da última contagem das 24h) porque isso era impraticável, já que o resultado do exame às vezes demora muito. 
Errada estava eu. Agora é isso: se você morre hoje e o resultado do seu exame não sai hoje, você não entra pra contagem. Não tem como analisar tanto exame nos poucos laboratórios disponíveis pra isso no mesmo dia. E o MS sabe. 
Essa é a forma mais inteligente de esconder os dados: a notificação por parte das secretarias municipais e estaduais existe, mas o MS não registra nem divulga se ela não se encaixar nesse parâmetro absurdo. 
Tudo que eu acho do Bolsonaro hoje eu já achava na época que ele era meme do CQC. Em 2018 eu tinha medo de viver uma ditadura no governo dele. Em 2019, eu fiquei dando risada das imbecilidades psicóticas dos ministros e dele. Parei de ter medo e passei a ter só ódio. 
Mas a ingênua fui eu: em tempos de pós-verdade, eu não deveria esperar uma ditadura no nível de 1964. 
Volto, então e sempre, pro visionário George Orwell que no livro 1984 trouxe como fantasia distópica o que estamos vivendo hoje, agorinha, em 2020: a manipulação de dados nos veículos de informação como forma de controlar e manipular o povo, que não se revolta porque não entende o que está acontecendo, afinal, o governo está sempre certo nas notícias. Aceita, agradece, idolatra e luta em prol do Grande Irmão, esse ente do Estado que protege a todos dos malfeitores que querem distruir essa sociedade maravilhosa, em que não existe nada de ruim. "Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força" – esse é o lema do Grande Irmão. 
Voltei a ter medo do Bolsonaro: não de perseguição política com milico na rua, mas de ocultação de dados, de mortes, enfim, da realidade caótica da pandemia. Bolsonaro lava as mãos com sangue contaminado de Sars-Cov-2. E há ainda muita gente aplaudindo o Grande Irmão. 

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