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1818 pra 1984 com pitadas de 1964

Passei meu TCC todo criticando a subnotificação de reação adversa de um dado medicamento. Quando entrei na residência, minha saga continuou e em mais de um projeto teórico-prático, fiz a mesma crítica.  Quem estudou epidemiologia um dia na vida sabe: sem notificação de dados, sem registro, não é possível tomar medidas de precaução pra evitar tragédias em saúde pública.  Esse é o objetivo do governo vigente. Se a curva de contágio magicamente começa a declinar, olha só que bom!, podemos voltar ao normal como vários outros países. Financiar hospital de campanha? Pra que? O número de mortes caiu! Quarentena, isolamento social, auxílio emergencial? Eles que lutem, que vão trabalhar!  A "gripezinha" que até domingo passado matava 1300 pessoas por contagem diária, desde ontem mata "só" 500.  Sabe quando a gente fazia conta na prova de matemática e achava o resultado estranho e pensava "devo estar fazendo essa conta errada, vou tentar de outro jeito."? É isso.  A

Tempo e espaço

Abri a porta do quarto que um dia dividimos. Esse dia parecia muito distante, mas não faz nem um mês desde a última vez que você veio. Entrei e vasculhei com os olhos qualquer prova material de que você tinha estado ali comigo um dia. Mas nada encontrei. Ao invés disso, lembrei do porta retrato vazio, jogado na mesinha, que havia comprado semana passada. Ainda não tinha tido tempo de mandar revelar uma das nossas raras fotos juntos pra preenchê-lo. Agora ele continuaria sem vida.  Não satisfeita, comecei a procurar não sei o que no guarda-roupa e, revirando minhas gavetas, achei o cartão feito à mão que me dera há exatamente 1 semana. Ousei abrir e li todas as coisas bonitas que tinha me escrito, num tempo que parecia extremamente distante.  Cogitei me desfazer dele. Mas preferi não, fiquei com pena - de mim. Era a única coisa que você tinha me deixado. A única coisa que me fazia lembrar que você tinha me amado um dia como eu te amei - e como ainda te amo. Porque você foi a pe

Cotidiano I

Era mais um dia comum. Eu voltando o trabalho cansada, com a bolsa pesada, pensando em tudo que eu teria pra fazer quando chegasse em casa e indo em direção à estação pegar o metrô - que, àquela hora, não estaria mais lotado. Parei um pouco antes da catraca pra poder fumar um último cigarro antes de encarar mais uma boa uma hora de viagem até a minha casa.  Já passava das sete da noite e, por estar perto do natal, o movimento nos arredores era maior que o de costume.  Eu gostava de me encostar na parede enquanto fumava e observar o fluxo de pessoas. Me divertia imaginando para onde elas estavam indo, o que elas tinham dentro das sacolas das lojas do shopping e coisas assim.  Um casal que estava vindo do shopping parou perto das catracas para se despedir. A menina de um metro e meio parecia uma criança. O rapaz era mais alto, mas não de uma forma desproporcional. Era um casal normal que se beijava pra se despedir. Claramente, alguém ia pegar o metrô e o outro ia por outro caminho

É pela paz que eu não quero seguir admitindo

Rio de Janeiro. Quem mora, sabe que aqui se vive um cenário de guerra. E tem pra todo mundo: tem o confronto rotineiro do BOPE nas favelas e tem os assaltos à mão armada em ônibus, na rua, na joalheria do shopping. Tem arrastão na praia, tem "pivete" no Centro. A gente não devia se acostumar, mas acaba. É até um mecanismo de defesa: se a gente surtar toda vez que isso acontece, como estaria nossa já debilitada saúde mental? Mas aí você tá na faculdade. Você faz UFRJ. Escolheu fazer algum curso que está no campus do fundão. Dos cursos metidos a besta, só Direito não tá lá. O fundão é uma ilha, como o próprio nome completo já diz. Definição de ilha, aqui, é um espaço de terra cercado de água e favela pra todos os lados. De um lado a linha amarela, do outro a vermelha. Até aí ok, o fundão não é a exceção no Rio. É a regra. E exatamente por isso, lá também tem morador de rua que fica nos pontos abordando as pessoas (e ninguém faz nada ou muito pouco pra ajudar essa galera).

Despedida

Acordei de madrugada achando que já era tarde. O relógio na cabeceira da cama marcava 5:30 da manhã. Mas não tinha importância porque eu sempre me atrasava pra chegar no trabalho. Então, acordar um pouco mais cedo só podia ser vantajoso. Me arrumei e tomei aquele café da manhã de serviço de bordo, típico de quem mora sozinho e não tem paciência pra fazer qualquer coisa muito cedo. Mesmo quando eu tentava não pensar nisso, mesmo me educando mentalmente todos esses meses, era inevitável pensar nela. Ela, cuja ausência era sentida em cada canto da casa, em todo minuto da rotina. Sentia falta dela queimando demais o pão na frigideira, das músicas que ela escolhia no carro quando íamos pro trabalho juntos. Da forma como ela dobrava as minhas roupas na gaveta, do cheiro de laranja que ficava no banheiro quando ela lavava os cabelos longos e cacheados. Todos os dias não estar com ela era uma dificuldade a se enfrentar. Os amigos ainda não tinham se acostumado também. É, sobretudo, ainda

Chega! Eu não aguento mais!

Quem costuma estudar muito ou trabalhar muito tá acostumado a se sentir mentalmente exausto, como  se seus neurônios fossem derreter ou entrar em curto. O cansaço mental é pior do que o cansaço físico. Este último passa com algumas horas de sono, mas pro primeiro às vezes nem deitar a cabeça no travesseiro adianta – você está tão esgotado, mas seus problemas ainda ocupam espaço na sua mente e atrapalham toda sua noite de sono. Tem gente que, quando finalmente consegue dormir, até sonha com os problemas – ou melhor, tem pesadelos com eles. Todo período na faculdade tem pelo menos uma matéria que me faz ter crise de ansiedade só de pensar na prova. E quando essa prova estiver perto, vai ser uma tortura. Todo período eu digo que vai ser diferente. Que eu vou me acalmar e não me desesperar com a quantidade absurda de matéria que eu preciso aprender em poucos dias. Que eu vou pra prova tranquila porque dei tudo de mim. Mas é mentira. São dias e dias de tormento. Acordar cedo pra começa

Você foi um erro, mas obrigada

Uma vez, há muito tempo, eu namorei um cara incrível. Ele me ensinou muitas coisas sobre filmes e história em quadrinhos e a gente sempre tinha tanto assunto sobre qualquer coisa que parecíamos almas gêmeas. Eu o admirava tanto que me apaixonar por ele era tão lógico e natural quanto, sei lá, emergir até a superfície quando se está sem ar debaixo d'água. Na época, eu era muito nova – emocionalmente falando. Finalmente tinha chegado na fase adulta e me sentia no auge da minha maturidade. Achava que era forte, incorrigível, indomável, segura das minhas convicções. Mas não era. E estar com ele por tanto tempo (um tempo recorde pra mim) só deixou isso claro. Pra tentar deixar as coisas razoáveis entre nós, eu dei as costas pro empoderamento que eu tanto pregava, reprimi minha espontaneidade, me senti errada mesmo quando eu achava que estava certa. Eu era um pássaro conformado pelas asas cortadas, que até achava ok a visão do céu através do vidro da janela. Já reclamei muito de tud

Posso fazer tudo sozinha, mas nem sempre eu quero

Eu amo estar sozinha. De verdade. Não é o tipo de coisa que eu digo pra fingir pra mim mesma e pras outras pessoas que estou ok com isso. Nesse exato momento, sou o único ser humano da casa, não preciso conversar, nem ouvir, nem ser interrompida. Posso andar nua, de calcinha, deixar a louça pra depois, sair sem dizer pra onde vou e voltar sem me importar com a hora. Se isso não é liberdade, eu não sei o que é. A questão é que às vezes cansa. Ou melhor dizendo: às vezes não é conveniente.  Por exemplo: eu amo comer. E, hoje, me deu uma vontade louca de ir pra um rodízio de pizza que tem num shopping aqui de perto. Mas não tem a menor graça ir pra um rodízio sozinha. Rodízio é aquele programa que você vai comer sem compromisso com a hora, com o preço, com a quantidade e fica falando de coisas triviais com alguém. A espera pela pizza que você tanto quer se torna agradável se você está em boa companhia. E sozinha? Provavelmente, eu ficaria impaciente com todas as esperas. Comeria meno

Crise de meia idade

Eu estava na segunda cerveja, já meio sem visão periférica, com o lábio dormente e ficando com aquele sono que sempre bate quando eu bebo algo fermentado. O Gabriel tinha vindo de carro e, por isso, eu estava bebendo sozinha.  A semana tinha sido corrida pra nós dois: cada um sacrificando as preciosas horas de sono por motivos importantes - eu pelas provas, ele pela namorada. Então estávamos os dois exaustos dos dias anteriores, mas persistentes na ideia de nos encontrarmos pra colocar o assunto em dia e comer hambúrguer.  Combinamos de ir cedo pro barzinho pra não sairmos de lá tarde - e quando deu dez e meia já estávamos bocejando enquanto terminávamos de comer a batata frita. Mas tudo bem, nenhum de nós encarava isso como falta de interesse: reconhecíamos o cansaço um do outro e fomos tratando de nos despedirmos pra finalmente descansar.  Me surpreendi quando cheguei em casa e ainda faltava mais de uma hora pra dar meia-noite. Parecia que cada vez eu chegava mais cedo em casa

Camellia sinensis

Estava sentada no banco daquele shopping deserto que você gostava tanto de ir. Eu nunca tinha te visto, mas já adorava a sua pessoa. Você chegou com o seu jeito sério e tímido – tão característico –, a mochila de quem veio direto da faculdade, e o adesivo do Freixo colado na blusa preta. E, ao te ver, sorri imediatamente porque me reconheci em você. Achava engraçado como tínhamos assunto novo até recordando brinquedos da infância remota dentro da Rihappy e como falávamos de coisas difíceis com tanta naturalidade, como se nos conhecêssemos há tempos, sem estranhezas. Lembro que fomos comer e acho que nunca tomei tanto chá gelado na minha vida: um copo atrás do outro, copo um camelo no deserto ou um alcoólatra no bar. Quando eu fico nervosa, preciso ocupar meu corpo com alguma coisa inócua porque sei que minha mente ansiosa pode me trair e me obrigar a falar ou agir de um jeito estranho. No fim das contas, não havia espaço pra conversas triviais, como quais eram nossas bandas favorit